sexta-feira, 11 de julho de 2008

SAPOS, BORBOLETAS, POLÍCIA E EXÉRCITO - LÚCIO ALVES DE BARROS..

SAPOS, BORBOLETAS, POLÍCIA E EXÉRCITO.

Lúcio Alves de Barros
Professor e sociólogo, licenciado e bacharel em Ciências Sociais pela UFJF, mestre em Sociologia, doutor em Ciências Humanas: sociologia e política pela UFMG. Autor do livro, Fordismo: origens e metamorfoses. Piracicaba: Ed. UNIMEP, 2004; organizador da obra Polícia em Movimento. Belo Horizonte: Ed. ASPRA, 2006 e co-autor do livro de poesias, Das emoções frágeis e efêmeras. Belo Horizonte: Ed. ASA, 2006.

"Viver é um soco no estômago" (Clarice Lispector)

Mais um sapo a engolir. Não é possível, em todo lugar percebe-se somente pessoas entaladas, “ensapeadas”, enfezadas e alienadas. Coitado do sapo. Ele é engolido de manhã e cuspido à noite como borboleta. No estômago sofre refluxos e o ataque de gases e ácidos, mas de pouco adianta. Os erros se sucedem e vamos continuar a comer os pobres coitados.
O sapo da vez é a atabalhoada ação do exército no dia 14 de julho, em pleno sábado, no Morro da Mineira, centro do Rio de Janeiro. Como foi alardeado aqui e acolá, um tenente do Exército, Vinícius Ghidetti, acompanhado de um sargento e alguns soldados, portanto, um pelotão, prenderam três jovens negros (mulatos como quer parte da mídia), Wellington Gonzaga da Costa Ferreira, 19 anos, David Wilson Florêncio da Silva, 24, e Marcos Paulo Rodrigues Campos de 17. Vejam bem, eles prenderam os jovens e atuando como polícia, diga-se de passagem uma polícia corrupta, os entregaram para uma região rival, o “Morro da Providência”. Tal como juízes, pelo menos em teoria, os traficantes torturaram, literalmente arrancaram partes dos corpos dos jovens e distribuíram 46 tiros, a maioria na cabeça.
O Rio de Janeiro é uma caixa de ressonância dos males que ocorrem no Brasil. O caso acontece lá e causa reboliço em todo lugar. Contudo, não deixa de ser enganosa a tentativa do governo em apontar o caso como algo pontual e não generalizável. O próprio governo tenta se eximir de sua responsabilidade, chegando a ponto do ministro da Defesa, Nelson Jobim ir ver as famílias e pedir desculpas. O Presidente Lula, o qual não fez mais do que a obrigação, falou em indenização das famílias como se o Estado estivesse fazendo um favor e não cumprindo o dever de restituição por um erro institucional. Esse sapo será difícil de engolir. Mas, na realidade, já o engolimos e talvez seja possível somente verificar o que está incomodando o estômago, vamos aos fatos.
Em primeiro, definitivamente o Exército não é polícia. Sua tropa não é treinada para isso e, mesmo se fosse, não justificaria aquela ação. Existe um grande detalhe que não se deve esquecer, por trás de um tenente existe um capitão, um major, um tenente coronel e um coronel. No caso do Exército, ainda temos um general, o Ministro, e o presidente da República. Todos são responsáveis. Cada uma destas autoridades, forjadas com nossos impostos e legitimidade de voto, tem sua parcela de culpa. E culpa com “C” maiúsculo. Em um governo respeitável era para cair a maioria das pessoas que estão nestes postos, responsabilizando os agentes que estão empurrando o sapo em nossa goela e punindo os que deixaram os sapos e mataram os três jovens. E não posso esquecer que o Exército estava atuando há tempos naquele local, fazendo o trabalho não somente de polícia, mas de verdadeiros leões de chácara do programa “Cimento Social”, criado pelo senador Marcelo Crivella (PRB), que faz parte da base governamental. Dizer que é vergonhoso e lamentável o caso ocorrido é o mesmo que nada dizer. O ato em é tirânico, fascista, maldoso, covarde, insano, perverso e...
Em segundo, é de causar náusea, mas é certo afirmar que mais um caso vai para a caixa de pandora que é o Brasil: atende-se uma vítima ali, outra acolá, prende-se um suspeito lá outro cá, depois mais uma criança morre em uma ação da PM contra o tráfico em uma “zona quente de criminalidade”, uma pessoa é seqüestrada e fica tudo por isso mesmo. Os mesmos intelectuais são chamados na TV. Falam da mesma coisa de poucos anos atrás. Colocam umas palavras difíceis no discurso, analisam como deveria ser a PM do futuro, o que é um país democrático, que o Lula, tal como outros que por lá passaram, é isso, é aquilo, que as instituições devem ser fortalecidas e por aí vai. È uma conversa de botequim, mas como está na Globo News, Jornal Nacional, Veja ou IstoÉ, parece que tudo vai se resolver. A verdade é que estamos em crise aberta no campo da segurança pública. Indubitavelmente, não existe justiça, tampouco instituições confiáveis nesse país. Assustada está a maioria das pessoas, e, pior que isso, estão caladas, abafadas, amedrontadas, assustadas e desencantadas. Enclausuradas elas vegetam no silêncio e longe da poesia do conflito e da contradição. Isso não é bom para a democracia, palavra de qualquer cientista político, mas não é bom também saber que a vida está banalizada e, dependendo da cor, idade, sexo, fisionomia, condição social e moradia o valor de determinada pessoa cai, tal como caíram os corpos dos três garotos.
Em terceiro, é forçoso denunciar o mito da sociedade pacífica e cordial que perpassa o campo midiático, normativo e político brasileiro. Não é plausível que tanto os homens como as mulheres não estejam percebendo a intolerância, a tensão e o descontrole social. O Estado não é vulnerável: ele é fraco socialmente e sua fraqueza há muito está sendo revestida de contornos perversos e demagógicos. É inadmissível uma instituição como o Exército, erroneamente, entregar para o tráfico as devidas funções que deve cumprir o judiciário. Mais que isso: é inacreditável, mas o Exército seguiu à risca a linha governamental da política de segurança pública levada a efeito pelo governador do Rio, Sérgio Cabral (PMDB). Sua linha é aquela defendida por muitos que hoje estão liderando o campo da política, do judiciário e do imaginário acadêmico, “se as cadeias andam cheias, os cemitérios estão vazios”. Em tais circunstâncias, esperar o que de um país que presencia a morte de três jovens como se fossem galinhas e somente pune os de baixa patente? Há um detalhe: até o momento no qual escrevo estas linhas, não foi punido nenhum traficante açougueiro que cortou partes dos órgãos daqueles que foram entregues para o abate. A impunidade é a marca e a aura deste país. Está na alma do brasileiro o sadismo e o gozo diante do sofrimento dos mais pobres. Não por acaso que crescem os condomínios de luxo e as cidades fortificadas. A situação vai piorar e a cisão social, crescente e vitalizada pela má distribuição de renda e recursos simbólicos, não cheira a boa coisa em longo prazo.
Finalmente, é de causar mal-estar viver em um país no qual se sabe que, mais do que nunca, vigoram os seguintes princípios: “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, “a corda arrebenta sempre para o lado mais fraco”, “não adianta remar contra a maré”, “quem tem dinheiro pode tudo, inclusive, comprar o papa”, “ladrão bom, é ladrão morto”, “quer ficar rico, entre para a política, roube um banco ou vire traficante”, “estudar para que se podemos comprar o diploma”, “basta conhecer alguém influente que você se dá bem em qualquer lugar”, “passado o perigo, se esquece o santo”, “boa aparência é carta de apresentação”, “mulher e galinha são bichos interesseiros: galinha por milho, mulher por dinheiro”, “sorria sempre e bajule”, “quem tem competência, não se estabelece”, “dos males o menor”, “dizendo-se as verdades, perdem-se as amizades”, “seja colaborador, esqueça o trabalho e vista a camisa de sua empresa”, “puxe o saco do patrão e deixe o pau comer” e “engula sapos durante o dia e cuspa borboletas à noite”.
“Ao vencedor, as batatas!” (Quincas Borba, 1891 - Machado de Assis).