Texto copiado do blog do Tenente-Coronel de Polícia Antônio Carlos Carballo Blanco:
“O governador dorme o sono dos justos; o secretário descansa em berço esplêndido; o comandante repousa como um cristão; e o soldado, lá na ponta, suja as mãos de sangue. Se der merda, o bagulho estoura no elo mais fraco, é claro. Quem paga o pato é o soldado. Quem vai a juízo é o soldado. Quem freqüenta as listas das entidades internacionais de direitos humanos é o soldado. O governador é ambíguo para descansar em paz; o secretário é sutil para preservar a consciência; o comandante cultiva os eufemismos e opta pelo vacabulário enviesado para proteger a honra e o emprego. Sobra para o soldado (...). É curioso: a ambigüidade só pode ser cultivada nos ambientes solenes do Palácio do Governo, onde a impostura e a violência são adocicadas pela coregografia elegante da política.
“Quando a arena é a favela, os rituais são outros, menos sofisticados. Na praça de guerra não há espaço nem tempo para a solenidade e as ambivalências. O que era doce fica amargo, azeda e cai de podre. A gente, que atua lá na ponta da cadeia de decisões, colhe o fruto podre e faz o que pode para digerir. Por isso, talvez seja mentira dizer que só há ambivalências nos salões da corte. Elas estão por toda a parte. E estão aqui entre nós. E dentro de nós, em mim e em você”.
Quando ouvi no rádio a notícia trágica do assassinato do menino João Roberto Soares, no dia 8 de julho, lembrei-me desse trecho do livro Elite da Tropa (Objetiva: 2006), que escrevi com André Batista e Rodrigo Pimentel. João, de três anos de idade, foi morto por policiais militares simplesmente porque confudiram o carro, onde ele estava com o irmãozinho e a mãe. Foi sem-querer. Havia outro carro que eles teriam metralhado por-querer, mesmo que os suspeitos não resistissem às suas ordens --a mãe o faria, se tivesse tido a oportunidade de fazê-lo, ou seja, sairia do carro com as mãos na nuca e se deitaria no chão, se os policiais tivessem tido a misericórdia de lhe dar essa chance ou apenas tivessem aplicado o manual de instruções.
Além do inominável –tirar a vida de uma criança e arruinar uma família, além de degradar ainda mais a imagem da instituição que deveria fundar sua eficiência, exatamente, na confiança da população-, o que mais há na cena selvagem e nas reações oficiais que a sucederam?
O acontecimento inclassificável revela que os policiais sequer supuseram a hipótese de que poderiam estar matando inocentes. Não se trata, portanto, de agir com ou sem competência técnica. Trata-se, antes de tudo, de sequer duvidar da legitimidade de atirar às cegas para matar. Registre-se, ainda, que os policiais não estavam acuados, não estavam sendo perseguidos e não atiraram para proteger-se, errando o alvo. Nada disso. Eles é que perseguiam suspeitos em fuga.
Claro que seria razoável mencionar a absoluta inépcia técnica, a ausência de treinamento (por mais rudimentar que fosse), a precariedade extrema da formação profissional, a tensão psicológica em que vivem os policiais fluminenses (sem qualquer apoio nessa área), a exaustão física, fruto do acúmulo de jornadas de trabalho sucessivas, na segurança pública e no “bico” (ao qual recorrem para sobreviver, dado o baixíssimo nível salarial). Mesmo assim, faltaria algo à compreensão do episódio: por que não duvidar, por um segundo sequer, da legitimidade do emprego da força letal?
A resposta é uma só: a política de segurança, em vigência, se é que merece esse título, sustenta a necessidade do confronto e a justeza da morte dos “inimigos” do Estado, a qualquer preço, mesmo que seja a vida de inocentes. Casos e casos foram objeto de questionamentos, nos morros, nas favelas, por parte de entidades de direitos humanos. Mas as críticas foram rechaçadas por editorialistas que saudaram a “nova” política de segurança do governo do Rio (curiosamente, nenhum método, nenhuma abordagem do problema é mais antiga, em nosso estado). As autoridades aplaudiram seus policiais e celebraram o suposto triunfo da “nova” política. Esse tipo de orientação se casa, perfeitamente, com a cultura tradicional de nossas corporações policiais, herdada dos tempos sombrios da ditadura. Somadas, a “nova política” e a velha cultura profissional, tem-se a bomba-relógio. Enquanto ela explode nas favelas, os efeitos colaterais são postos na conta do imaginário “fim superior” (como disse o secretário, certa vez: não se fazem omeletes sem quebrarem-se ovos –desde que esses ovos que se partem não sejam os filhos da classe média, porque, como ele mesmo disse, os mesmos eventos têm significados diferentes e repercussões políticas distintas, na zona sul e nas favelas ou periferias).
Ano passado, no estado do RJ, 1330 pessoas foram mortas em ações policiais –o número é oficial e, certamente, subestimado. Quantas dessas mortes foram execuções? Quantos desses casos foram investigados pelas polícias, pelo MP, pela Justiça? O que fizemos, enquanto sociedade, a esse respeito? Nos Estados Unidos, há 20 mil policiais, aproximadamente, e 300 milhões de habitantes. Morrem cerca de 300 pessoas, por ano, vítimas de ações policiais. Todo ano, no Rio, a brutalidade letal das polícias produz mais de mil vítimas. Esse ano, mais uma vez –e assim como em 2007--, o recorde será batido. E quem é a vítima típica da violência policial letal? O jovem pobre e negro. O Rio já avançou o sinal que separa as “casualties” do genocídio.
Esse é o ambiente mental e valorativo em que são tomadas decisões sobre uso da arma de fogo por profissionais das instituições que deveriam, segundo a Constituição, proteger a vida. A prioridade de qualquer política consequente de segurança pública teria de ser a defesa da vida.
Por isso, tanto quanto cobrar responsabilidades dos policiais que puxaram o gatilho, matando, dessa vez, uma criança de três anos –depois de tantos de seus colegas terem matado tantas outras crianças e jovens, e antes que voltem a fazê-lo-, deveríamos questionar os editorialistas que ajudaram a montar a bomba e os gestores superiores, que atearam fogo à pólvora.
É profundamente lamentável ouvir o governador Cabral chamar os policiais de “débeis mentais”. A pusilanimidade já foi mais bem educada.