O Ocaso do Inquérito Policial
A burocracia continua defendendo o status quo, mesmo depois do quo ter perdido o status.” (Laurence J. Peter)
A burocracia continua defendendo o status quo, mesmo depois do quo ter perdido o status.” (Laurence J. Peter)
Alguns órgãos da imprensa especializada têm oferecido notícias auspiciosas às vésperas da 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública, evento que ocorrerá na capital federal. Na ocasião, as atenções estarão voltadas para um amplo estudo sobre o atual sistema penal brasileiro, que foi objeto de avaliação empírica e meticulosa por parte de sessenta pesquisadores, encabeçados pelo sociólogo Michel Misse. Segundo previsões mais otimistas, o referido escrutínio promete lançar as bases de uma nova política criminal no Brasil.
Pelo enquadramento dado a questão, o presente estudo tocará o ponto nevrálgico na gestão das polícias judiciárias, colocando em evidência os principais desacertos na administração das carreiras policiais. Segundo a Federação Nacional dos Policiais Federais - Fenapef, entidade que encomendou a pesquisa, o trabalho propõe-se a uma reavaliação do atual modelo de investigação policial, colocando às escâncaras sua ineficácia e morosidade, atributos que vem favorecendo a impunidade no país.
O inquérito policial, portanto, será o principal objeto da análise. Espera-se que o estudo possa enfim revelar, com critérios objetivos e isentos, aquilo que todos já intuem: que o inquérito policial é um instrumento ultrapassado, uma espécie de arquétipo de nossa cultura burocrática e cartorial, mazelas que perseguem os países subdesenvolvidos como um fantasma.
Sob o ponto de vista pragmático, o inquérito tem revelado um ritualismo processual vazio, eivado de inutilidades. Na melhor das hipóteses, não passa de uma saraivada de carimbaços, firmas, papelórios e formalidades, cujo automatismo, além de oneroso, tem gerado uma série de procrastinações indesejáveis, que emperram a persecução penal logo nos seus primórdios. Não é por outra razão que esse expediente caduco e protelatório desfaz em júbilos toda uma advocacia mercantil e parasitária, que sempre tirou das chicanas o motivo de seu sucesso.
Parece exagero retórico, mas não é. A rigor, o inquérito policial não se constitui sequer como parte da investigação policial, mas apenas lhe empresta um leve verniz jurídico e protocolar para sua formalização final. É como um figurante que tentar roubar a cena dos protagonistas principais. A irrelevância do inquérito é tão evidente que o próprio Código de Processo Penal lhe prevê a dispensa nos casos em que a notitia criminis e os elementos probatórios cheguem diretamente às mãos do Ministério Público, reunindo então requisitos suficientes à propositura da ação penal. E aqui cabe a pergunta: quem são, em última análise, os protagonistas principais na consecução dos elementos probatórios? De imediato, são as diligências policiais, as perícias técnicas e as entrevistas. Ou seja, tudo exceto o inquérito.
Ora, se a legislação pátria possibilita que outro caminho seja trilhado que não o do inquérito policial, é porque vislumbra que este instrumento não é um fim em si mesmo, mas apenas um meio pelo qual uma série de outros atos jurídicos – esses, sim, indispensáveis – dele poderão derivar. Não se pode, por exemplo, abrir mão de uma denúncia ministerial ou do crivo de um contraditório, assim como não se pode tampouco prescindir de uma sentença ou veredicto; porém, o mesmo se dirá do inquérito policial? Algumas pessoas devem estar questionando o que restará quando o inquérito sair de cena. Elas esquecem que os Termos Circunstanciados já são uma realidade, e precisam ser emulados, aperfeiçoados e expandidos.
A verdade é que o inquérito não tem demonstrado a razão de existir. Sua patente esterilidade, sobretudo processual, se materializa no momento em que chega ao poder judiciário, ocasião em que sua validade procedimental é subtraída e todos os seus aspectos essenciais passam a ser reeditados. De resto, o seu caráter francamente inquisitorial – e, vale insistir, obsoleto - lhe expõe a inúmeros desvios, de tal sorte a comprometer sua lisura. De instituto protocolar e inócuo, converte-se num instrumento potencialmente coativo, no qual medeia uma excessiva dose de burocracia, com trâmites infindáveis, constrangimentos e escândalos diversos, numa verdadeira via crucis cartorial que não raras vezes ocorre sob os flashes da mídia. O leitmotiv de toda burocracia transviada é exatamente este: “criar dificuldades, para vender facilidades”. Eis aí os meandros pelos quais a corrupção costuma se infiltrar no meio policial.
O fato é que o inquérito se tornou o emblema de um modelo arcaico de polícia judiciária, criando diversos entraves e reduzindo de forma acachapante a capacidade operativa das corporações. Tudo isso com base num conceito equivocado de que a atividade policial se esgota num saber jurídico e bacharelesco. Mas a prática mostra que essa atmosfera cartorial sufocante, na qual os policiais se atolam numa miríade de expedientes inúteis, acaba desviando os profissionais de sua verdadeira atividade-fim, que é a investigação criminal.
Não vai demorar muito para que esse modelo seja finalmente superado, e junto com sua insolvência se construa um novo paradigma. O paradigma de uma polícia verdadeiramente científica, multiprofissional, tributária de um serviço público célere e eficiente, que estreite cada vez mais os vínculos com o seu consumidor final, que é a comunidade.
Luciano Porciuncula Garrido é Psicólogo e Especialista em Segurança Pública.
JUNTOS SOMOS FORTES!Pelo enquadramento dado a questão, o presente estudo tocará o ponto nevrálgico na gestão das polícias judiciárias, colocando em evidência os principais desacertos na administração das carreiras policiais. Segundo a Federação Nacional dos Policiais Federais - Fenapef, entidade que encomendou a pesquisa, o trabalho propõe-se a uma reavaliação do atual modelo de investigação policial, colocando às escâncaras sua ineficácia e morosidade, atributos que vem favorecendo a impunidade no país.
O inquérito policial, portanto, será o principal objeto da análise. Espera-se que o estudo possa enfim revelar, com critérios objetivos e isentos, aquilo que todos já intuem: que o inquérito policial é um instrumento ultrapassado, uma espécie de arquétipo de nossa cultura burocrática e cartorial, mazelas que perseguem os países subdesenvolvidos como um fantasma.
Sob o ponto de vista pragmático, o inquérito tem revelado um ritualismo processual vazio, eivado de inutilidades. Na melhor das hipóteses, não passa de uma saraivada de carimbaços, firmas, papelórios e formalidades, cujo automatismo, além de oneroso, tem gerado uma série de procrastinações indesejáveis, que emperram a persecução penal logo nos seus primórdios. Não é por outra razão que esse expediente caduco e protelatório desfaz em júbilos toda uma advocacia mercantil e parasitária, que sempre tirou das chicanas o motivo de seu sucesso.
Parece exagero retórico, mas não é. A rigor, o inquérito policial não se constitui sequer como parte da investigação policial, mas apenas lhe empresta um leve verniz jurídico e protocolar para sua formalização final. É como um figurante que tentar roubar a cena dos protagonistas principais. A irrelevância do inquérito é tão evidente que o próprio Código de Processo Penal lhe prevê a dispensa nos casos em que a notitia criminis e os elementos probatórios cheguem diretamente às mãos do Ministério Público, reunindo então requisitos suficientes à propositura da ação penal. E aqui cabe a pergunta: quem são, em última análise, os protagonistas principais na consecução dos elementos probatórios? De imediato, são as diligências policiais, as perícias técnicas e as entrevistas. Ou seja, tudo exceto o inquérito.
Ora, se a legislação pátria possibilita que outro caminho seja trilhado que não o do inquérito policial, é porque vislumbra que este instrumento não é um fim em si mesmo, mas apenas um meio pelo qual uma série de outros atos jurídicos – esses, sim, indispensáveis – dele poderão derivar. Não se pode, por exemplo, abrir mão de uma denúncia ministerial ou do crivo de um contraditório, assim como não se pode tampouco prescindir de uma sentença ou veredicto; porém, o mesmo se dirá do inquérito policial? Algumas pessoas devem estar questionando o que restará quando o inquérito sair de cena. Elas esquecem que os Termos Circunstanciados já são uma realidade, e precisam ser emulados, aperfeiçoados e expandidos.
A verdade é que o inquérito não tem demonstrado a razão de existir. Sua patente esterilidade, sobretudo processual, se materializa no momento em que chega ao poder judiciário, ocasião em que sua validade procedimental é subtraída e todos os seus aspectos essenciais passam a ser reeditados. De resto, o seu caráter francamente inquisitorial – e, vale insistir, obsoleto - lhe expõe a inúmeros desvios, de tal sorte a comprometer sua lisura. De instituto protocolar e inócuo, converte-se num instrumento potencialmente coativo, no qual medeia uma excessiva dose de burocracia, com trâmites infindáveis, constrangimentos e escândalos diversos, numa verdadeira via crucis cartorial que não raras vezes ocorre sob os flashes da mídia. O leitmotiv de toda burocracia transviada é exatamente este: “criar dificuldades, para vender facilidades”. Eis aí os meandros pelos quais a corrupção costuma se infiltrar no meio policial.
O fato é que o inquérito se tornou o emblema de um modelo arcaico de polícia judiciária, criando diversos entraves e reduzindo de forma acachapante a capacidade operativa das corporações. Tudo isso com base num conceito equivocado de que a atividade policial se esgota num saber jurídico e bacharelesco. Mas a prática mostra que essa atmosfera cartorial sufocante, na qual os policiais se atolam numa miríade de expedientes inúteis, acaba desviando os profissionais de sua verdadeira atividade-fim, que é a investigação criminal.
Não vai demorar muito para que esse modelo seja finalmente superado, e junto com sua insolvência se construa um novo paradigma. O paradigma de uma polícia verdadeiramente científica, multiprofissional, tributária de um serviço público célere e eficiente, que estreite cada vez mais os vínculos com o seu consumidor final, que é a comunidade.
Luciano Porciuncula Garrido é Psicólogo e Especialista em Segurança Pública.
PAULO RICARDO PAÚL
PROFESSOR E CORONEL
Ex-CORREGEDOR INTERNO
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