Adriana Cruz e Gustavo de Almeida
Rio - Sábado de manhã, Quartel-General (QG) da Polícia Militar do Rio, na Rua Evaristo da Veiga, Cinelândia. O tenente Melquisedec Nascimento, que tinha cumprido plantão de oficial de dia, acaba de fechar o zíper da bolsa com seus pertences e sai do gabinete para o pátio, onde há uma imagem de São Jorge — cultuado na polícia por ser um santo guerreiro. Sonolento, Melquisedec leva um susto: dezenas de colegas que não estavam de plantão estão estacionando no pátio ou conversando enquanto tomam café. O oficial chega a pensar que houve alguma situação de perigo que exigiu convocação extraordinária. E fica preocupado, afinal, se houve algum perigo, ele, de plantão, não ficou sabendo. Punição na certa.
Mas, em minutos, descobre a verdade: a única operação da qual aquelas dezenas de policiais estão participando é a de retirada, ou melhor, da debandada geral. Ou Operação Concurso, que já criou na corporação até um apelido para este tipo de policial: o PM “concurseiro”, ou seja, aquele que faz todo tipo de concurso para tentar outra profissão.
OUTRAS OPÇÕES
Melquisedec vê os policiais estacionando no pátio do QG (têm direito). Em seguida, todos vão a pé até a sede de um cursinho preparatório para concursos de ingresso em órgãos como Polícia Rodoviária, Tribunal do Trabalho, Tribunal Eleitoral e Polícia Federal. O tenente, presidente da Associação dos Militares Auxiliares e Especialistas (Amae), fica estarrecido, mas reconhece: “A desmotivação na polícia é uma constante. Não há como segurar os bons profissionais que querem ganhar melhor em carreiras menos estressantes”.Para fugir dos baixos salários, da corrupção e dos desmandos político-administrativos, policiais militares estão deixando as ruas e voltando para os bancos escolares. São aqueles apelidados dentro da corporação de “concurseiros” que buscam carreiras mais atrativas, mesmo sendo considerados modelos dentro da PM.Em cursinhos preparatórios para concursos públicos, é surpreendente a quantidade de PMs. Na Academia dos Concursos, o mais procurado pela tropa, há 400 distribuídos por 35 turmas que preparam para a Polícia Rodoviária Federal, bem mais atraente com seus R$ 5.085 de salário inicial. Outros 50, no mesmo cursinho, estudam para outras áreas.
Fábio Gonçalves, coordenador da Academia das Concursos, confirma a enorme presença de PMs nos cursos. “A maioria, entretanto, estuda para concursos da área policial mesmo, só que com maiores salários. Normalmente são policiais civis ou militares em que o salário não chega a R$ 1.500 e estão estudando para concursos da Polícia Rodoviária Federal ou Polícia Federal, em cargos mais atraentes do que no estado. A PRF tem 350 vagas abertas com salário inicial de R$ 5.085, mais de três vezes o salário de policial do estado.
Outro caso comum é o policial civil ou militar que está terminando o curso de Direito e vai estudar para tentar virar delegado federal”, diz.
Há dois meses, o tenente e presidente da Amae vende vinhos pelo telefone como forma de reforçar o orçamento. “Ainda há muita gente honesta que insiste com a PM. Mas até quando isso vai durar?”, questiona. “É preciso investir no salário e na formação”, ressalta.
EM 14 ANOS, MAIS DE 1.500 PEDIRAM PARA SAIR
A antropóloga Silvia Ramos, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, lembra que os concursos para a PM ainda têm muita atratividade e destaca que há uma procura maior da classe média pela profissão. “No último concurso houve 40 mil candidatos, uma proporção de vagas mais difícil que Medicina. E olha que a PM do Rio é considerada a segunda mais mal paga do País. Entre esses candidatos, havia uma quantidade alta de pessoas com curso universitário, de classe média”, diz a antropóloga, que não acha anormal essa procura. "Há alguns fatores para que o curso para oficial da PM ainda seja muito procurado. Se o candidato passa, tem uma carreira estável. Não é nenhuma maravilha, mas depois de um curso de três anos na Academia da Polícia Militar, quando você sai, não precisa disputar mercado de trabalho. Se o cara não fizer nada de errado, não precisa também fazer nada de brilhante para chegar ao topo da carreira”, afirma Silvia Ramos.O capitão da reserva Paulo Storani, ex-instrutor do temido Curso de Operações Especiais do Bope, reconhece que sua saída foi “um protesto”. “A decisão de sair teve origem na minha participação em um movimento salarial no qual fizemos um levantamento de dados sobre a PM do Rio e descobrimos que, de 1982 a 1996, teria perdido quase 1.600 policiais por causa do salário.” Na sexta-feira, a reportagem de O DIA procurou o setor de Relações-Públicas da PM para que um representante falasse sobre o assunto, mas até o fechamento não houve resposta.
APREÇO PELA FARDA É O QUE RESTA
O tenente X., que recebeu em sua casa uma equipe de O DIA sob promessa de ter sua identidade preservada, mal chega do plantão e já senta à mesa de estudos. Por ser de classe média e morar na Zona Sul da cidade, o oficial ainda consegue voltar para casa fardado sem o medo de ser identificado por bandidos em um ônibus.
Mas não sabe até quando, já que estuda muito para poder largar a farda que preza tanto. E é de berço. “Meu pai e todos os irmãos dele são militares, apesar de nenhum ser oficial. Eu sempre pensava numa profissão que fosse de liderança e prestígio. Decidi pela PMERJ por causa da operacionalidade.”
O apreço pela corporação jamais diminuirá, na visão do tenente. Para ele, no entanto, não dá mais por diversos fatores. “O salário, pode-se dizer, é o maior fator de desmotivação. Porém outras coisas também desmotivam muito: no meu caso, saí da Academia Dom João VI formado para ser oficial combatente. Mas, a exemplo do que mostra o filme ‘Tropa de Elite’, minha primeira função em um batalhão foi ser chefe de garagem. Isso para um jovem é horrível.”
OS 400 DOS CONCURSOS
Nos últimos 20 anos, os pedidos de baixa têm sido freqüentes. Levantamento feito pelo deputado estadual Paulo Ramos (PDT) — major reformado da PM — mostra que ano após ano a evasão é regular, ao lado do número de expulsos e mortos. “Com a desilusão, dependendo do tempo de serviço, o sujeito adoece, sai com o proporcional, mas às vezes quer ir embora mesmo. Na CPI das Mortes de Policiais, descobrimos que, por ano, a PM perde entre 800 e 1.000 policiais por ferimentos diversos, armas de fogo, acidentes de carro, ficam tetraplégicos ou incapazes”, lamenta.
Dauro Pimentel, consultor de atendimento da Academia dos Concursos, estima que haja pelo menos 400 policiais militares matriculados só no curso de Polícia Rodoviária Federal. Outros 50 estariam nos cursos que preparam para a Polícia Federal, Tribunal de Justiça e Tribunal Regional Federal. “Há 35 turmas só para PRF, com 400 PMs. Acho que os baixos salários motivam o êxodo”, avalia Pimentel.Para o tenente X., ouvido por O DIA, a falta de funções mais ligadas à segurança pública também pesa. “O atual comando da PM não colabora, pois, recentemente, propôs que o interstício de tenente para capitão subisse de três a cinco anos, ou seja, o tenente fica mais dois anos cuidando de garagem, longe das ruas.”
O deputado estadual Flávio Bolsonaro (PP), da Comissão de Segurança Pública da Alerj, acredita que a auto-estima, hoje em dia, é o que mais mantém o policial ainda na corporação. Mas alerta para a questão salarial: “A primeira coisa a se valorizar na política de segurança pública é o salário do policial. Eles podem ter 100% de reajuste que ainda assim não terão salários compatíveis com as responsabilidades e com o risco”.
PAULO RICARDO PAÚL
CORONEL DE POLÍCIA
CORREGEDOR INTERNO
Um comentário:
Sr.Cel.Paúl:
Esta reportagem foi brilhante, e mostra a real insatisfação dos Policiais, que não aguentam mais receber salários aviltantes, e nada vêem como luz ao final do túnel (desconfio que esse túnel leva mais três anos de construção).
Agora, o Tenente Melquisedec, um Policial Militar articulado e inteligente levar susto e ficar estarrecido (menos, Tenente) ao ver tantos Policiais fazendo cursinho... Até eu que sou velhinha e bobinha: sei disso!
Aff!
Um abraço,
CHRISTINA ANTUNES FREITAS
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