Na quinta feira, 1 de novembro, enquanto colocava a farda (uniforme 3º A), no alojamento do Corregedor Interno, mais uma vez constatei que precisava arrumar o meu armário do quartel.
Eu sempre invejei os companheiros de turma que conseguiam manter os seus armários completamente arrumados, com os seus objetos perfeitamente alinhados, apesar do corre-corre nosso de todo dia.
Armários arrumados ao máximo e que vez por outra, sofriam um sacudimento na calada da noite, promovido por alguns companheiros, apenas para desestabilizar o perfeccionista, que declarava guerra a todos diante da desordem resultante.
Um fato típico de escolas militares, brincadeiras castrenses, que ao final solidificavam amizades em razão dos desencontros não resistirem ao próximo toque da alvorada.
E voltando ao tempo presente, diante daquela necessidade de promover a arrumação, resolvi fazer uma breve reorganização do conteúdo do armário e mexendo aqui e ali, voltei aos tempos da Escola de Formação de Oficiais (EsFO) e do triênio 1976-1978, quando cursei o Curso de Formação de Oficiais (CFO).
Arrumar armários é uma tarefa perigosa, ela nos transporta no tempo, de um lado para o outro e nos trás à lembrança momentos de grande alegria e profunda tristeza.
A cada etapa dessa breve arrumação, uma lembrança invadia a mente.
As dificuldades do tempo de Aluno Oficial e que eram inúmeras.
O regime de internato durante os 3 (três) anos do curso, quando saíamos rapidamente nas quartas-feiras à tarde, retornando à noite e saíamos às sextas-feiras, quando retornávamos nos domingos à noite.
Isso quando não estávamos de serviço ou de licenciamento sustado (LS), o que nos impedia de sair da EsFO.
Os trotes dos veteranos do 3º ano quando éramos “bichos” (1º ano do CFO).
A festa do Espadim (13 de maio de 1976).
As madrugadas estudando.
Os corridões intermináveis do Tenente Schitini.
O estágio de guerrilha e a sobrevivência na selva.
O apoio dos companheiros de turma para vencer as dificuldades.
A festa do Aspirantado (1 de dezembro de 1978).
Tudo parece ter passado tão rápido, embora tenha deixado profundas cicatrizes.
Os amigos que não estiveram presentes nem mesmo à festa do Aspirantado e os amigos que não estiveram presentes nas reuniões de turma subseqüentes.
A nossa mortalidade física obrigatória interrompe por algum tempo o contato com os amigos.
Eram tempos difíceis os tempos do CFO, o Brasil vivia uma época de exceções e nos quartéis ouvíamos falar do “inimigo interno”, que destruiria o Brasil e as suas Instituições.
Um “inimigo interno” que promovia ações criminosas e que pregava a luta armada.
Tempo de ideologias conflitantes.
Tivemos que treinar a guerra de guerrilha.
Aprendemos sobre cordéis detonantes e bombas.
Sobrevivemos no mato.
Vivenciamos na Serra de Madureira dias de explosões, de fome, de frio, de cordas e de “geladeira”.
Tudo ficou no passado, guardado no armário e na memória.
Eram tempos difíceis de repressão no país e músicas populares eram transformadas em hinos de liberdade.
O tricolor Chico Buarque compôs algumas das mais famosas.
Falava-se pouco e sobre poucos.
A censura era nossa companheira.
A vida seguiu em frente e a nossa carreira também.
Lutamos por cada promoção ao próximo posto, diante dos problemas gerados pela fusão dos Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro.
Alternamos ações de polícia de enfrentamento, com ações de polícia comunitária, em conformidade com as ordens do Governador eleito.
Comparecemos a incontáveis enterros, enquanto alguns de nós eram promovidos por bravura e recebiam a pecúnia (gratificação faroeste).
O tempo passou.
O “inimigo interno” que iria destruir o Brasil ficou para trás.
Vivemos a reabertura política, festejamos a liberdade.
Passamos a conviver com uma Constituição Cidadã, promulgada em 1988, mesmo ano em que a minha turma de CFO foi promovida ao posto de Capitão pela denominada Lei dos 10 Anos.
E essa breve regressão foi interrompida, considerando que eu só arrumei uma pequena parcela do conteúdo do armário, tendo em vista que o tempo era apenas o referente à colocação da farda.
Estava pronto e segui para a missão, devidamente fardado e ostentando a medalha de 30 Anos de Serviço, a única que uso regularmente.
Voltei à realidade e ao enfrentamento dos problemas cotidianos do Corregedor Interno.
Porém, o “inimigo interno”, aquele que queria destruir o Brasil, permaneceu na minha mente.
Não se fala mais nele nos nossos quartéis, porém quando vejo que a cidadania plena é direito de poucos, penso nele.
Os nossos milhões de excluídos não seriam vítimas desse “inimigo interno”?
Será que nesses tempos em que podemos falar quase tudo e sobre todos, ele não mudou a sua roupagem?
Será que ele não mudou a sua ideologia?
Será que ele não está vivo entre nós, ricamente travestido?
Será que o Brasil ainda corre riscos?
Eu sempre invejei os companheiros de turma que conseguiam manter os seus armários completamente arrumados, com os seus objetos perfeitamente alinhados, apesar do corre-corre nosso de todo dia.
Armários arrumados ao máximo e que vez por outra, sofriam um sacudimento na calada da noite, promovido por alguns companheiros, apenas para desestabilizar o perfeccionista, que declarava guerra a todos diante da desordem resultante.
Um fato típico de escolas militares, brincadeiras castrenses, que ao final solidificavam amizades em razão dos desencontros não resistirem ao próximo toque da alvorada.
E voltando ao tempo presente, diante daquela necessidade de promover a arrumação, resolvi fazer uma breve reorganização do conteúdo do armário e mexendo aqui e ali, voltei aos tempos da Escola de Formação de Oficiais (EsFO) e do triênio 1976-1978, quando cursei o Curso de Formação de Oficiais (CFO).
Arrumar armários é uma tarefa perigosa, ela nos transporta no tempo, de um lado para o outro e nos trás à lembrança momentos de grande alegria e profunda tristeza.
A cada etapa dessa breve arrumação, uma lembrança invadia a mente.
As dificuldades do tempo de Aluno Oficial e que eram inúmeras.
O regime de internato durante os 3 (três) anos do curso, quando saíamos rapidamente nas quartas-feiras à tarde, retornando à noite e saíamos às sextas-feiras, quando retornávamos nos domingos à noite.
Isso quando não estávamos de serviço ou de licenciamento sustado (LS), o que nos impedia de sair da EsFO.
Os trotes dos veteranos do 3º ano quando éramos “bichos” (1º ano do CFO).
A festa do Espadim (13 de maio de 1976).
As madrugadas estudando.
Os corridões intermináveis do Tenente Schitini.
O estágio de guerrilha e a sobrevivência na selva.
O apoio dos companheiros de turma para vencer as dificuldades.
A festa do Aspirantado (1 de dezembro de 1978).
Tudo parece ter passado tão rápido, embora tenha deixado profundas cicatrizes.
Os amigos que não estiveram presentes nem mesmo à festa do Aspirantado e os amigos que não estiveram presentes nas reuniões de turma subseqüentes.
A nossa mortalidade física obrigatória interrompe por algum tempo o contato com os amigos.
Eram tempos difíceis os tempos do CFO, o Brasil vivia uma época de exceções e nos quartéis ouvíamos falar do “inimigo interno”, que destruiria o Brasil e as suas Instituições.
Um “inimigo interno” que promovia ações criminosas e que pregava a luta armada.
Tempo de ideologias conflitantes.
Tivemos que treinar a guerra de guerrilha.
Aprendemos sobre cordéis detonantes e bombas.
Sobrevivemos no mato.
Vivenciamos na Serra de Madureira dias de explosões, de fome, de frio, de cordas e de “geladeira”.
Tudo ficou no passado, guardado no armário e na memória.
Eram tempos difíceis de repressão no país e músicas populares eram transformadas em hinos de liberdade.
O tricolor Chico Buarque compôs algumas das mais famosas.
Falava-se pouco e sobre poucos.
A censura era nossa companheira.
A vida seguiu em frente e a nossa carreira também.
Lutamos por cada promoção ao próximo posto, diante dos problemas gerados pela fusão dos Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro.
Alternamos ações de polícia de enfrentamento, com ações de polícia comunitária, em conformidade com as ordens do Governador eleito.
Comparecemos a incontáveis enterros, enquanto alguns de nós eram promovidos por bravura e recebiam a pecúnia (gratificação faroeste).
O tempo passou.
O “inimigo interno” que iria destruir o Brasil ficou para trás.
Vivemos a reabertura política, festejamos a liberdade.
Passamos a conviver com uma Constituição Cidadã, promulgada em 1988, mesmo ano em que a minha turma de CFO foi promovida ao posto de Capitão pela denominada Lei dos 10 Anos.
E essa breve regressão foi interrompida, considerando que eu só arrumei uma pequena parcela do conteúdo do armário, tendo em vista que o tempo era apenas o referente à colocação da farda.
Estava pronto e segui para a missão, devidamente fardado e ostentando a medalha de 30 Anos de Serviço, a única que uso regularmente.
Voltei à realidade e ao enfrentamento dos problemas cotidianos do Corregedor Interno.
Porém, o “inimigo interno”, aquele que queria destruir o Brasil, permaneceu na minha mente.
Não se fala mais nele nos nossos quartéis, porém quando vejo que a cidadania plena é direito de poucos, penso nele.
Os nossos milhões de excluídos não seriam vítimas desse “inimigo interno”?
Será que nesses tempos em que podemos falar quase tudo e sobre todos, ele não mudou a sua roupagem?
Será que ele não mudou a sua ideologia?
Será que ele não está vivo entre nós, ricamente travestido?
Será que o Brasil ainda corre riscos?
Quem sabe se cada um de nós, brasileiros, arrumarmos os nossos armários, talvez encontremos as respostas!
Uma coisa é certa, existem músicas imortais, como a “APESAR DE VOCÊ”, do tricolor Chico Buarque.
Cante com o Chico e reflita:
PAULO RICARDO PAÚL
CORONEL
CORREGEDOR INTERNO
CORONEL
CORREGEDOR INTERNO
6 comentários:
Os "inimigos internos", outrora "guerrilheiros" ou "subversivos", hoje desempenham outros papéis. Talvez assim alguns possam entender por que vivemos o atual quadro.
Turma 76
VIVA AOS """"DIREITOS HUMANOS"""""
Sr. Coronel,
É muito triste presenciar a estadia em nosso Brasil de um elemento da ONU, para investigar a morte de bandidos, mas tudo isso só esta acontecendo em função da sociedade hipocrita lançar nos jornais cartas em nome da mesma.Entretanto 100 assinaturas não representa nenhuma sociedade.Lendo seu comentario,também resolvi arrumar a minha mente e acabei lembrando da morte do Tenente SARMENTO quando incursionava o morro de São Carlos, o mesmo foi morto por bandidos,fui ao funeral deste bravo CAVEIRA,entretanto não presenciei nenhuma ong de direitos humanos,nehuma represetação das igrejas,nenhuma representação do legislativo,nenhuma representação da tortura nunca mais, nemhum intelectual,nenhum artista, nenhum jornalista,nenhum representante da onu,nenhum representante do viva rio,nenhum representante do MP,nenhum representante do judiciario,a ong global também não estava presente e outros mais.Apenas encontrei,oficiais da PM,soldados PM,amigos,familiares na tarde cinza deste funeral.Sendo assim concluo que a nossa sociedade é podre e o inigo número um interno,pois com o bando de viciados que temos nesta sociedade a policia é que paga o pato.Chega de CIRCO,pois não sou palhaço,gostaria de ser mais jovem para partir para o enfrentamento e cabar com esses bandidos dentro da lei.Mas infelizmente estou com 60 anos e não tenho mais como participar de uma corporação como a PMERJ.SOU CIVIL , MAS TENHO ORGULHO DA NOSSA PEMERJ,NÃO É O CASO DESTA SOCIEDADE O QUE TENHO É NOJO.DESCULPE ALGUM ERRO MAS A EMOÇÃO ACBA FAZENDO ISTO.
Sr.Cel.Paúl:
Faço o mea culpa, pois no regime de excessão em que tudo era proibido, todos os males que poderiam acontecer ao Brasil, eu e amigos colocávamos na conta dos EUA.
Pois bem, o tempo passou e hoje vejo de forma patética: temos como "inimigos" Venezuela e Bolívia! Seria Cômico se não fosse Trágico!
Claro que a forma de Colonização (fala sério: mandaram Bangu I, II, III, IV, V, etc., toda para cá) teve um peso incrível em nossa formação.
Depois tivemos contato com um Rei, (não vou citar o nome, afinal a APM não merece), que vem com toda família Real em fuga do seu de seu país.
Enfim, somos um povo sem tradição de luta por seus direitos. Não tivemos grandes exemplos na Colonização. Parece que recuar, fugir, barganhar é o nosso destino.
Ops! Nosso destino? Não!
Existe o Livre Arbítrio e podemos mudar tudo isso aí, é uma questão de atitude.
Vejo hoje, alguns focos resistentes com "atitudes".
Tenho esperança que sejam afirmativos o bastante, para não verem suas idéias envelhecerem, antes de serem postas em prática!
Um abraço,
CHRISTINA ANTUNES FREITAS
Senhor Coronel:
V.Sª. incentivou-me a arrumar, também, o meu armário. Ele não está em caserna, é doméstico, em que tenho muitos guardados, de épocas anteriores ao ano em que o Sr. começou a sua arrumação, até os dias presentes.
Mas não mexi em coisas antigas (talvez um dia o faça), fi-lo, apenas, em acervos recentes, coisa de pouco mais de uno para cá. E aí, encontrei uma carta, enviada-me por um certo político (esclareço: assinada pelo remetente), datada de 23 de setembro de 2006, em que ele diz
“Caro(a) Professor(a):
Como candidato a Governador do Estado, elegi como prioridade no meu governo a educação, pois penso que não se constrói uma nação sem que se dê uma formação adequada às crianças e aos jovens.
Acredito que a melhoria no sistema educacional se faz, além dos investimentos na infraestrutura de sala de aula, com o investimento em professor. Só é possível se oferecer às nossas crianças e aos nossos jovens uma educação de qualidade com professores bem remunerados, capacitados, motivados e com a garantia do recebimento de aposentadoria e pensão dignas.
É por isso que me dirijo a você para assumir os seguintes compromissos, que considero mais importantes, na área da educação:
▪ Reposição das perdas salariais dos últimos 10 anos;
▪ Manutenção do atual plano de carreira com a inclusão dos professores de 40 horas;
▪Descongelamento do plano de carreira dos funcionários administrativos;
▪ Fim da política de gratificação do Nova-Escola e incorporação do valor da gratificação ao piso salarial;
▪ Fim da política de abonos;
▪Abono das greves e paralisações;
▪Fim das terceirizações e contratos precários e abertura imediata de concurso público para professores e funcionários.
Minha vida pública é pautada pela independência. Não tenho compromisso com ninguém, a não ser com o povo do meu Estado”, etc.
Senhor Coronel , o Senhor e os demais leitores deste Blog podem até achar descabido tratar deste assunto neste espaço, onde se discute a Segurança Pública, mas a minha intenção é mostrar que assim como as Polícias, também a Educação (sem falar em outros segmentos dos servidores deste Estado) estão sendo vítimas de um Estelionato Político. As questões fundamentais referentes a essas áreas, principalmente no tocante ao salário do pessoal , como o Sr. sabe, não tiveram qualquer melhoria significativa. O magistério continua um descalabro. O Nova –Escola, (um engodo criado no governo anterior) não acabou , e a ela não faz jus o professor no primeiro ano do exercício da função (seu vencimento bruto não chega a R$ 600,00 ). “Reposição das perdas salariais dos últimos 10 anos”! Quando?... A maioria das escolas continua com as mesmas deficiências de antes...
Enfim, Sr.Coronel Paúl, urge um MOVIMENTO UNIDO das três principais áreas do Serviço Público deste Estado (Educação, Segurança e Saúde)- essas mesmas que os governantes, quando candidatos, juram que serão as prioridades dos seus governos!- para dar um “basta” ao caos que vem solapando a Dignidade dos Servidores e tornando, a cada dia, mais precários os serviços prestados à população do Estado do Rio de Janeiro.
SENHORES IMAGINEM SE ESTA CARTA FOSSE DE UM PM QUE TIVESSE DEIXADO A CORPORAÇÃO:
Prezado Comandante,
Esta carta foi escrita como uma última tentativa de mudar o que não consegui em quase uma década. Meu desânimo, que culminou na desistência da minha carreira, foi cultivado sistematicamente dia após dia, através da observação e vivência de atitudes que desprestigiavam meu bom-senso, capacidade crítica e intelecto, sobre os quais passarei a discorrer mais adiante.
Após ter sido aprovado, em 1998, num dos concursos mais concorridos daquela época, ingressei na Escola Naval, tendo preterido uma carreira de engenheiro eletrônico na UFRJ. Julgava que a carreira naval se mostrava mais promissora, com estabilidade, interstícios bem definidos e ainda um certo prestígio junto à sociedade. Esse foi o espírito com o qual fui admitido na Marinha do Brasil. Após cinco anos de formação, e apenas um de oficial, já havia tomado a decisão: não havia como permanecer nesta carreira, a não ser, literalmente, "com o sacrifício da própria vida". Um sacrifício contínuo, que eu via se abater sobre todos os meus colegas de Praça d´Armas, fossem eles Segundos-Tenentes, Capitães-Tenentes ou até Capitães-de-Mar-e-Guerra. Não estou falando de um sacrifício honrado, merecido, daqueles que se vêem nos filmes e são inerentes aos heróis. Não, o sacrifício de que falo, nessa carreira que insistem em chamar de "sacerdócio", era um sacrifício inócuo, quixotesco, cujos maiores feitos eram a contagem correta e ilibada – quase obsessiva - de vidros de mostarda no balanço de paiol e a maquiagem bem feita, a qual custou toda uma noite em claro, para o recebimento de uma autoridade que só se importava com a idade do whisky que iria ser servido.
Todos esses fatores me levaram a buscar uma carreira extra-Marinha, o que consegui, com a ajuda de meu Senhor Jesus, quando fui aprovado para o cargo de Analista Administrativo do TRE-RJ, o qual estou exercendo no momento. Mas o que me impressiona mesmo é que, a despeito da minha anterior posição, no início de uma brilhante carreira que se desfraldava para mim, nenhuma autoridade se interessou em descobrir por que eu havia decidido abandonar a Marinha. Eu não era um desempregado em busca de um trabalho tampouco um estudante recém-formado em direito, mas um Oficial de Carreira das Forças Armadas que resolveu, como já foi me dito, "trocar os botões dourados por uma salinha suja numa repartição". No mínimo, é inquietante que a Diretoria de Pessoal esteja realizando pesquisas de satisfação cujo resultado seja que esse êxodo deve-se à "falta de cursos no exterior" e ao "sucateamento dos meios". Esses não são, nem de longe, os reais motivos. E, pelo menos, quanto à oficialidade da Marinha, também não o é a remuneração. A prova disso é que pelo menos metade dos oficiais que estudam para concursos também busca carreiras de nível médio, cuja remuneração é menor, mas possuem maior qualidade de vida em relação ao regime semi-aberto que se tornou a carreira naval. Se nós formos buscar os reais motivos dessa insatisfação coletiva, porém velada, veremos que são causadas por problemas estruturais, e não conjunturais. Sua causa não está nos baixos salários, embora eles estejam realmente abaixo da média do funcionalismo público federal. Nem no reduzido orçamento, que de fato está sendo cortado ano após ano. E muito menos na redução da quantidade de meios operativos. O valor desta carta reside neste ponto: todos os problemas que serão abordados podem ser resolvidos dentro de casa, através de iniciativas internas, independentes de orçamento, e – o pior – em pouquíssimo tempo, por meio de decisões administrativas simples, que não são tomadas por má-vontade, orgulho, miopia administrativa ou apego demasiado a uma tradição caduca, que emperra e desagrega esta Força, ao invés de uni-la em laços comuns, na medida em que origina ações e ordens contraproducentes que contribuem sobremaneira para o mau andamento do serviço.
Compreendemos que as Forças Armadas, conceitualmente, exercem um papel primordial na manutenção da paz, na dissuasão de hostilidades estrangeiras e na consecução dos nossos objetivos estratégicos como nação – assim como consta nas tão festejadas apostilas da Escola de Guerra Naval. Ainda mais, acreditamos e gostaríamos que essas metas fossem alcançadas, com seriedade e profissionalismo. O problema é que também compreendemos quão diametralmente opostas desses objetivos estão as decisões e atitudes tomadas por nossas autoridades, que destinam porções generosas dos recursos para a pintura incessante de equipamentos que já não funcionam por falta de recursos. Que se apropriam das já parcas etapas de alimentação e as transformam compulsoriamente em "sobras lícitas", de modo que possam comprar parafusos, tinta, cera e bancar coquetéis para almirantes que festejam a decadência da própria Força. Que investem milhões de reais do contribuinte na compra e manutenção de meios já defasados, que onerarão ainda mais o orçamento, já que os próprios países de origem não toleram seu custo-benefício, isto se considerando que são países ricos. E, o pior, cada atitude dessa vem travestida de honradez e pundonor. A pintura de piso, de sucata, de ferrugem (somente para o dia de uma visita), se reveste do caráter de limpeza e organização, de modo que não fira os olhos de uma autoridade que reluta em não ver a realidade. O saque da nossa mesa vira espírito de sacrifício, o que vem acompanhado de manipulação das notas fiscais para que a comprovação de gastos com solda seja transformada em aparelhos de TV para a tripulação. E a aquisição de "novos" meios deteriorados é motivo de orgulho das autoridades, que se gabam de fortalecer a instituição em tempos de dificuldades, ainda que tenham comprado o refugo de outros países. Esses meios NÃO irão contribuir para a soberania da nação – não andam, nem funcionam, e ainda exporão a vida da tripulação a um risco desnecessário, pois nossos navios não possuem mais portas estanques, nem sistemas de combate a incêndio eficientes, e suas instalações funcionam na base do "gatilho", sendo isto um dos grandes geradores da sobrecarga de trabalho à qual nossas praças e oficiais de baixa patente estão submetidos.
A chave para se compreender o choque de gerações que ocorre em nossos tempos é a divulgação da informação. O movimento conhecido como Tenentismo , um conhecido de longa data, se manifesta atualmente enriquecido e ligeiramente modificado, uma vez que não se utiliza mais do embate das armas, e nem possui o fervor patriótico de outrora. Com a Internet, ficou muito difícil para o sistema de formação de oficiais privar os alunos e aspirantes da realidade reinante, como acontecia antigamente na chamada "bolha". Hoje, é praticamente impossível realizar uma lavagem cerebral completa, que torne o militar subserviente o necessário, pois a visão de mundo que um jovem tem não o permite – e essa é a causa de tantos oficiais superiores reclamarem que "não se fazem mais tenentes como antes". Eu e meus colegas enxergamos a Marinha como mais um órgão estatal, que tem suas funções específicas definidas em lei, e atualmente não está executando-as de forma adequada; não vamos tomá-la pelas armas, nem nos insurgirmos em revoltas. Não, nós não amamos a Marinha acima de nossas próprias vidas, pois isso sequer faz sentido. E entendemos que o mercado de trabalho também mudou, inclusive na iniciativa privada, onde ninguém mais tem um emprego para a vida toda; aplicamos isso em nossas vidas particulares e decidimos que podemos trabalhar onde melhor nos convier, seja por pagar melhor ou ter uma rotina de trabalho mais agradável, e isso sem o peso na consciência de largar o "sacerdócio". É muita inocência achar que iremos abdicar, conhecendo nossa capacidade, competência, potencial e qualificação, de carreiras públicas que nos oferecem dignidade pessoal, respeito profissional, horário de trabalho justo e, de quebra, remuneração inicial de Contra-Almirante.
Para estudar para meu concurso, tive de fazê-lo em oculto, sob pena de ser execrado do convívio da Força ou perseguido. E fui punido por não ter comunicado minha inscrição, assim como preconiza a retrógrada legislação vigente. Porém, fica o aviso de que o número de oficiais descontentes que agora estudam escondidos é muito maior do que os mais de 30 tenentes que cancelaram seu Curso de Aperfeiçoamento nos últimos dois anos e do que a turma somente de Aspirantes que fechou uma sala exclusiva na Academia do Concurso Público.
Há de ser ressaltado que a geração de oficiais superiores e almirantes atualmente no comando foi formada durante o regime militar ou no pós-regime, uma época bem mais intensa nos valores e também nas arbitrariedades. O mundo mudou, as relações sociais, econômicas e empregatícias também, mas a Marinha insistiu em cristalizar-se novamente em suas tradições, e quanto mais o tempo passa mais esta instituição se afunda num anacronismo intenso. O mundo realmente pode ter mudado muito rápido para que algumas autoridades pudessem ter absorvido, mas é para tentar mudar um pouco essa mentalidade que passo a discorrer sobre algumas das principais causas de insatisfação na Marinha do Brasil:
SERVIÇO
· As Forças Armadas possuem uma singularidade em relação a outros órgãos e empresas, sejam públicas ou privadas: submetem seus militares a mais de 24 horas de trabalho contínuas. Isso seria simplesmente imprescindível caso estivéssemos em tempo de guerra. Mas considerando-se que nossos maiores inimigos são a sujeira do piso e o amarelo por fazer, não há respaldo para essa prática. Após o serviço, o militar não deve cumprir o expediente normal, visto que foi privado da sua noite de sono, tempo de lazer e convívio com a família. Médicos e policiais cumprem seus plantões (e muitas vezes conseguem descansar neles), são rendidos pela manhã e vão para casa. A carga horária semanal não deveria, constitucionalmente, exceder as 44 horas semanais – embora batamos com orgulho no peito nos vangloriando de que não possuímos direito algum – mas, com apenas um serviço na semana essa carga sobe para 56 horas. Numa escala muito comum, 3 por 1, o militar pode chegar a cumprir 80 horas semanais, sem nenhum tipo de compensação. É comum que cabos e marinheiros concorram a escalas de 1 por 1, sendo liberados, como um favor, ao meio-dia do dia de sua rendição. Eles cumprem 108 horas semanais, 145% a mais do que permite nossa Constituição, que defendemos com o sacrifício da própria vida.
· Durante o serviço nos fins-de-semana, é comum a prática de detalhar "faxinas" a serem realizadas no tempo vago – seja lá o que isso for. Durante o dia, o militar deve se desdobrar em 2 quartos de quatro horas, sendo um de madrugada, além de cumprir os adestramentos previstos. Nessas oito horas, ele permanece em geral em pé, no calor do sol e no frio da madrugada, e, para que não consiga se refazer entre um quarto e outro, é colocado para tratar conveses, limpar corredores ou soldar chapas no seu tempo vago. Será que perder o seu descanso semanal remunerado não é o suficiente, o militar tem que sentir dor o tempo todo? Nesta Força existe um conceito muito errado de que nossos militares são máquinas que devem produzir em tempo integral e de que qualquer tempo ocioso, incluído o de descanso, é desperdício.
· Os oficiais são obrigados, em geral, a permanecer em pé no portaló durante seu serviço – desde 06:00h, para fiscalizar(?!) o quarto d´alva –, visando basicamente a realização de cerimonial para visitas de autoridades não-anunciadas e a manutenção do alerta vermelho máximo para a passagem de lanchas de almirantes. Considero isso um desrespeito à minha formação e capacidade intelectual, uma vez que sou relegado a um mero soldado de chumbo, enfeitando um portaló, enquanto sou subaproveitado nas minhas tarefas administrativas. Cabe às autoridades definirem: o que é mais importante, um cerimonial que pode vir a acontecer ou a realização das tarefas administrativas vitais do navio? Sempre achei que tivesse estudado demais para ter simplesmente a função de ficar em pé por mais de 10 horas seguidas. O oficial de serviço pode sim, muito bem, ficar volante no navio, e atender situações que realmente façam jus à sua presença. Quanto ao procedimento das visitas não-anunciadas, já está na hora das autoridades se conscientizarem de que a máquina estatal não pode ficar completamente mobilizada simplesmente aguardando seu repentino aparecimento, de modo a louvá-las e engrandecê-las.
· É comum que se avalie a escala de serviço como "muito cochada", se arbitre uma satisfatória e depois se inventem postos desnecessários para se justificar esse aumento, de modo que não fiquem militares à toa, "sobrando", como se a folga da escala representasse mão-de-obra ociosa. Lembro também de quando estava na Escola Naval, onde o segundo-anista não poderia pegar menos serviço do que o terceiro-anista, e então criaram um "plantão do bar" para piorar a vida do segundo ano, e, comparativamente, melhorar a do terceiro (redistribuindo, assim, as cotas de infelicidade). Essa prática é muito comum também na Esquadra, matriz do "Caldeirão Naval", onde a escala do oficial não pode ser maior do que 5 por 1 e já houve caso de mais de três oficiais estarem de serviço em um mesmo dia desnecessariamente. Sei que um oficial pode se qualificar para concorrer à escala em mais de um navio, assim como eu mesmo já fui qualificado, e sem muito esforço; durante o expediente, cada navio poderia ter seu próprio oficial de serviço para resolver problemas administrativos, e, após, somente um dos oficiais se responsabilizaria pelos navios durante o pernoite. Ou então, os oficiais de serviço poderiam simplesmente ficar de sobreaviso, com um celular. Como a manutenção do Grupo de CAv geralmente é citada como impeditivo para a diminuição da tabela como um todo, lanço a V.Sas. um desafio: arquitetar um plano de combate a incêndio efetivo que se utilize somente dos militares de serviço. Isso se mostra na prática inviável, pois combater um incêndio com doze ou oito militares dá no mesmo – teremos que disparar o Halon ou chamar a brigada de bombeiros e GSE. Ressalto que a quase totalidade dos incidentes decorre da presença de pessoal a bordo, ou seja, quanto mais gente houver na tabela de serviço, maior será a quantidade de pessoas necessária para cuidar da tabela de serviço. Só haverá incêndio na cozinha se ela for utilizada, incêndio na coberta se esta estiver habitada, rompimento de rede se estiver pressurizada. A manutenção de uma tabela de serviço que pernoite a bordo é a causa mater dos sinistros, e sua diminuição ou extinção alteraria sobremaneira o paradigma do CAv. E, afinal de contas, se CAv fosse tão importante, as tomadas de incêndio não deveriam estar entupidas com Kaol.
COMISSÕES
· Sem esquecermos que, dentre as profissões do mar, só os pescadores são mais mal-remunerados do que nós, podemos fazer algumas considerações.. Se é fato que nossa compensação pecuniária é irrisória, então que haja compensação como há na Petrobrás: seja adotada a escala de 15 por 15, pelo menos (ou seja, um dia de licença para cada dia de comissão), sem se falar na escala de 14 por 21 adotada por aquela empresa, que é considerada de vanguarda até no âmbito internacional, e, logicamente, deve possuir uma capacidade administrativa de referência. Realmente somos homens de madeira em navios de ferro, e merecemos descanso depois desta atividade tão ingrata, que é se fazer ao mar, já que nem fazemos jus à compensação orgânica. Seria implausível abrir mão dos militares por tanto tempo? Creio que não, considerando que em cada dia de mar estamos 24h a serviço, período de tempo três vezes superior ao nosso expediente normal. Se a Marinha inventou tantos obstáculos administrativos de modo que uma tripulação operativa não possa se ausentar para ter descanso, que se transfiram essas responsabilidades para uma unidade administrativa, bastando uma alteração em DGPMs, SGMs, ou qualquer outro pedaço de papel. Afinal, alguém deve dar suporte aos nossos militares, ou não?
· Sendo o mar um ambiente inóspito por natureza, os tripulantes ainda são obrigados a cumprir expediente entre o enjôo e o serviço, embora o navio esteja em um período dedicado à vida operativa. Um mínimo de descanso e conforto é necessário ao marinheiro para que realize suas tarefas a contento e ajude a diminuir o stress que naturalmente surge em condições de afastamento e confinamento.
· Por último, o que considero mais desrespeitoso: obrigar a tripulação a baldear e pintar o navio no dia do regresso de uma comissão, sem ao menos terem tido a chance de verificar como estão seus familiares. A pintura não pode ser - ou transparecer que é - mais importante do que nossas famílias.
ROTINA E ADMINISTRAÇÃO
· Consideramos como nossas prioridades administrativas a desburocratização, a impessoalidade (nisto também subentendida a extinção do queromarinst, a mais arbitrária, arcaica e amadora forma de gerência existente), a definição de objetivos claros que devam ser alcançados e de prazos razoáveis a serem cumpridos – todas as nossas tarefas costumam ser "pra ontem", revelando o descompasso do nosso planejamento organizacional – , e o uso racional do dinheiro público. Por isso, não aceitamos pintar o piso para a visita de uma autoridade, ou pintar o navio antes mesmo de atracar, após três meses de comissão, como se retornasse da Terra-do-Nunca: isso é desperdício. Não aceitamos que se sirvam banquetes para autoridades, e depois compensem com semanas servindo macarrão com salsicha para a tripulação: isso é desrespeito. Inclusive, se há a coragem moral nesta Força de que tanto se ouve falar nas Praças d´Armas, então que se sirva para as autoridades extra-MB que visitarem nossas OMs o mesmo rancho que comemos diariamente. Esta é a melhor maneira de protestar pelo corte de nossos recursos. E, que, finalmente, a Marinha entenda que manutenção de limpeza e arrumação não é nossa função constitucional. Enquanto houver Capitães-de-Fragata passando os dedos com luva em cima de armários não poderemos nos concentrar nas tarefas que realmente importam.
· Assim como eu chego sem atrasos todo dia, em um horário definido, gostaria que a licença fosse cumprida desta mesma forma. O licenciamento não é um favor, muito menos concessão do comando: é uma obrigação com o militar que já cumpriu seu expediente diário. Não há como solucionar todos os problemas da MB em um único dia (e cabe ressaltar que a maior parte dos nossos problemas são explicitamente gerados pelas idiossincrasias de nossos oficiais superiores e almirantes, que desejam governar este órgão como melhor lhes parecer, satisfazendo suas prioridades pessoais e relevando as da organização). E se for necessário ficar após o horário, que haja compensação noutro dia. Além disso, a maior humilhação à qual me sujeitei durante estes mais de quatro anos de oficial foi suplicar, diariamente, para poder ir embora após cumprir meu expediente. Nós simplesmente não temos que nos despedir, como um ato de educação, mas ficamos atrelados a uma AUTORIZAÇÃO para irmos embora, o que gera um mal-estar horrível após ser repetido duas centenas de vezes, e ainda nos atrasa, em pelo menos, quarenta minutos por dia, tempo médio para vencer as filas dos nossos superiores nas mais diversas instâncias.
· Num passe de mágica, algumas autoridades pensam que podem apagar, através de confraternizações, o dia-a-dia estressante que impõem aos oficiais subalternos e intermediários, tornando todos "uma família" imediatamente. Essas confraternizações são marcadas, em geral, fora do horário de expediente, e são compulsórias, tornando-se um prolongamento (realmente longo) deste. Minha geração não troca o convívio de suas famílias por amigos de copo, e amizade verdadeira não exige comparecimento contrariado. Se todos estivessem satisfeitos, o congraçamento seria conseqüência natural. Quando o coquetel é realizado durante o dia, mostra-se mais um revés interessante: passam-se três horas ou mais de expediente no evento, e julga-se que isso não é errado – esse tempo desperdiçado exige, invariavelmente, uma dedicação suplementar para resolver as tarefas negligenciadas. Mas quando é necessário a um oficial sair mais cedo para resolver um problema, ele fica sendo mal visto. Isso é um exemplo clássico da nossa cultura: pode-se matar o expediente para beber, mas não para tratar de nossa vida pessoal.
· Como resultado de alguma carência afetiva, certas autoridades ficam nervosas se não receberem o bom dia, ou o boa noite. Esta é uma frivolidade que deve ser encarada da seguinte forma: as pessoas têm coisas mais importantes para fazer do que dar boa noite compulsoriamente umas às outras. Esse evento ocorre naturalmente ao haver um encontro fortuito entre duas pessoas educadas, e não deve ser objeto de recomendações intimidadoras ou ordens de parada.
· Por se falar em parada, esta consiste em uma das melhores formas de desperdiçar mão-de-obra. Como se ninguém soubesse sua função na OM, reúnem-se os oficiais para se despacharem ordens geralmente de caráter individual, ou se fazem verdadeiros grupos de discussão sobre assuntos aleatórios e fantásticos, enquanto todas as praças aguardam em formatura. Em suma, a OM fica parada por quase uma hora e depois se estende o expediente após o horário. Definitivamente, isso não é GQT. A parada pode ser feita por e-mail e os assuntos individuais, tratados individualmente...
· Assunto grave e delicado: caixa de economias. Se, hoje mesmo, o governo dobrasse nossa etapa de alimentação, melhoraríamos o padrão do nosso rancho ou dobraríamos nossa receita? Se é difícil trabalhar na escassez do orçamento, que se apliquem pelo menos os recursos corretamente na sua previsão legal. Não existem "sobras lícitas", pois na realidade não há sobras. Esta sobra artificial é criada quando se estipulam metas financeiras a serem atingidas em detrimento da qualidade de vida de nossas tripulações; como, então, exigir comprometimento? Como ser leal com quem nos retira o bife para comprar parafusos, tinta e souvenires para autoridades? Se não há previsão orçamentária para nossas despesas correntes e manutenção dos meios, então que nossos almirantes parem de ter medo de apertar quem se deve, nosso governo (se bem que apertar a própria Força é mais fácil e não arrisca a nomeação para cargos na ONU), e EXIJAM que sejam repassados os recursos necessários. Mas o que vi todos esses anos é que é mais cômodo exigir a excelência dos mais modernos, exaltando a "criatividade", como ouvi em tantas Ordens do Dia, quando na verdade não existem ferramentas adequadas, computadores em condições de uso ou nem sequer pano para limpeza, que deve ser reaproveitado até depois de rasgado. Esse é o exemplo de coragem e abnegação a ser seguido no Bicentenário de Tamandaré?
· Finalmente, o mais grave, por se tratar de crime: química. É inadmissível que se exija dos subordinados que se mascarem notas fiscais a fim de burlar o controle orçamentário que a própria Marinha idealizou e exportou para a Administração Pública com tanto orgulho. É desnecessário me aprofundar neste tema, mas eu alerto a todos que julgam que "os fins justificam os meios" que a grande quantidade de oficiais descontentes que foram aprovados como Analistas do TCU e na Polícia Federal recentemente pode vir a mudar o destino de quem tem grande prazer em resolver os problemas de bordo a qualquer custo, se achando acima da lei, ou que pensa que pode se explicar a um magistrado dizendo que o fez "em prol do serviço". Oficiais que desejam fazer o que julgam correto são mal vistos e retirados de suas funções para não atrapalharem o "bom" andamento do serviço. E isso também se aplica à venda ilegal de óleo combustível.
Embora não haja espaço nesta carta para citar todos os nossos vícios, como, por exemplo, a forma amadora de condução do reparo de um navio, esses são, no meu ponto de vista, alguns dos principais problemas geradores da desmotivação que se alastra pelos Oficiais Subalternos e Intermediários na Marinha, e são a causa do êxodo que vem ocorrendo. Eles são mutáveis, pois são concernentes à postura das nossas autoridades. A pena que as FFAA e, em especial, a Marinha, pagará, se não corrigir este problema postural, será ter uma lacuna irreparável em seus postos a médio e longo prazo. Se nossos almirantes decidirem descer dos pedestais e encararem a situação como homens valorosos que são, entenderão que este é um momento de guerra e medidas difíceis devem ser tomadas. Entendam: esta Força, como hoje conhecemos, não vai subsistir, nem de um modo, nem de outro. Se essas mudanças não forem feitas agora, as baixas em massa serão cada vez mais freqüentes e mais fortes, e, quando o remanescente da minha geração chegar ao comando, as fará. Se forem tomadas agora, a Marinha se tornará um lugar agradável de se trabalhar e muitos corações que hoje estão inclinados a sair podem retroceder. Não se enganem, existem Aspirantes do 2º ano estudando para concursos, e também Capitães-Tenentes em postos-chave, sendo que a média de espera para aprovação em um concurso é dois anos. É uma decisão a ser tomada rápido, antes que haja um colapso administrativo, e não existe como prender as pessoas com ameaças de indenização de cursos – o que, aliás, é inconstitucional.
É hora de rever as políticas de motivação e de aposentar o "Manual de Liderança da Marinha": parar de movimentar militares contrariados quando houver voluntários; respeitar a programação de férias que o militar fez com sua família com seis meses de antecedência; não tocar regresso geral fim-de-semana para comparecer a uma regata (teoricamente, isso é lazer); não exigir de todos nós que demos um "jeitinho" quando não houver previsão orçamentária (o famoso "fazer no amor"); não colocar como prioridade do nosso serviço o apito para lanchas de autoridades, sob o risco de receber uma mensagem exigindo apuração do fato; parar de achar que nossa oficialidade vai ter como sonho de vida tão somente esperar talvez ser Almirante dentro de trinta anos. Estas medidas surtirão muito mais efeito na qualidade do nosso trabalho do que qualquer "Programa Netuno", recém-divulgado, que já nasce com uma incongruência típica: enquanto toda a Administração Pública Federal terá oito anos para sua implementação, a Marinha implementará seu "pacote de qualidade" em um ano, com a famosa fórmula "embrulha e manda", se valendo do mascaramento de índices e avaliações.
Quanto a mim, sei que vou servir melhor ao meu País no TRE do que na Marinha, porque cansei de servir com amadores. Cansei de jogar dinheiro pelo ralo e de ver boas idéias se perdendo num labirinto de vaidades, priorizando-se limpeza e arrumação ao invés de segurança nacional. Cansei de pertencer a um celeiro de alcoólatras e pais ausentes; terei efetivamente tempo para me dedicar à minha família e viver dignamente, como não faço desde 19 de janeiro de 1998. E se alguém que ler esta carta se propuser a refutar meus argumentos, estarei à disposição, pois nunca fui de me fechar ao debate por uma simples questão hierárquica.
MARCIO DE ABREU PRAÇA CARDOSO
Primeiro-Tenente (RM2)
Analista Administrativo TRE-RJ
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