sexta-feira, 24 de abril de 2009

USO DE ALGEMAS - JUIZ PAULO FERNANDO SILVEIRA.

Súmula que restringe algemas põe policial em risco
Por Paulo Fernando Silveira
Pode a polícia, sob as regras da Constituição, fazer uso de algemas quando prende alguém em flagrante delito ou em cumprimento de uma ordem judicial de prisão? O Supremo Tribunal Federal entende, como regra, que não. Fundamenta-se, basicamente, no direito constitucional à privacidade (ou intimidade), que proíbe a violação da dignidade e da imagem da pessoa humana, o tratamento desumano e degradante do indivíduo e o desrespeito à integridade física e moral do preso. Em nível infraconstitucional, acena com vários dispositivos penais, dentre os quais o que veda o emprego de força e os relativos ao abuso de poder e de autoridade. Este artigo, com a devida vênia, sustenta posição contrária, levando-se em consideração, também, fortes princípios constitucionais estruturantes de uma nação civilizada e democrática: o do direito à preservação da vida (aí inserida a incolumidade física do policial e de terceiros) e o da igualdade, ou da isonomia (em situações iguais todos devem ter legalmente o mesmo tratamento) e, administrativamente, os da eficiência e da responsabilidade do agente (o ato da prisão deve ser praticado pela autoridade de modo a evitar danos previsíveis e irremediáveis a si, ao preso, ou a terceiros).
Disciplinando o uso de algemas pela polícia, recentemente, em 22 de agosto de 2008, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante 11, do seguinte teor: Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.
A excelsa corte, por seu plenário, invocou, como suporte de sua decisão, vários preceitos constitucionais, entre eles o que coloca a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito e os que, resguardando os direitos fundamentais, proíbe o tratamento desumano e degradante do indivíduo, a violação da imagem das pessoas e o que assegura ao preso o respeito à sua integridade física e moral — conforme artigo1º, inciso III e artigo 5º, incisos III, X e XLIX da Constituição Federal.
Em nível infraconstitucional, baseou-se, entre outros dispositivos, no artigo 284, do Código de Processo Penal — Não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso —; no artigo 350, do Código Penal, que cuida do crime de exercício arbitrário ou abuso de poder — Ordenar ou executar medida privativa de liberdade, sem as formalidades legais ou com abuso de poder —; e na Lei 4.898/65, que trata do abuso de autoridade — Artigo 4º. Constitui também abuso de autoridade: a) – ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder.
O Supremo Tribunal Federal resolveu editar a súmula vinculante em face do vácuo legislativo, isto é, da ausência de norma específica na Constituição de 1988 e de legislação própria sobre o uso de algemas, eis que o comando, expresso no artigo 199, da Lei de Execução Penal — a Lei 7.210/84 — o emprego de algemas será disciplinado por decreto federal — não foi, até o momento, cumprido pelo Poder Executivo.
Todavia, a meu ver, com todo o respeito, a Excelsa Corte de Justiça não foi feliz nessa sua surpreendente e inovadora iniciativa de normatização, generérica e apriorística, da conduta policial.
Digo surpreendente porque até então, durante toda a vigência do Código de Processo Penal em vigor, que é de 1941, o uso de algemas sempre foi considerado ato discricionário do policial que efetuava a prisão. A discrição, na verdade, era de fato duvidosa. Primeiro, porque o agente geralmente não tinha algema para ser empregada. Seu uso com mais intensidade só está acontecendo nos dias atuais. Depois, porque a algema, como regra, só era aplicada na prisão de pessoa pobre, considerada a priori como elemento perigoso e violento, e raramente — se é que houve algum caso — em gente rica e poderosa, sempre tida como gente de bem, o que sempre causava repulsa e protesto da elite dominante, inclusive pelos veículos de comunicação de sua propriedade, quando alguém de seu meio era tocado pela polícia ou condenado pelo Poder Judiciário.
Coincidência ou não, a Súmula Vinculante 11, de agosto de 2008, foi editada logo após a prisão de um banqueiro e de um ex-prefeito da capital paulista, em que ambos foram algemados. Foram ignorados os surdos clamores de uma sociedade saturada de injustiças no sentido de ser implementado já, de modo sério, para valer para todos, indistintamente, o princípio constitucional da igualdade. Ao contrário, optou-se, nos moldes dos tempos imperiais, por uma igualdade negativa, de difícil senão impossível realização que, por isso mesmo, continua privilegiando os poderosos.
Portanto, até o advento dessa súmula vinculante, a utilização da algema, no ato da prisão, constituía ato discricionário do agente encarregado da missão. Agora, a súmula proibiu o seu emprego, exceto nos restritos casos a que se refere. Logo, presentemente, a vedação da prática do ato de prevenção e contenção constitui a regra. E a excepcionalidade da medida ficou vinculada aos parâmetros autorizados pela citada súmula. Em resumo, a discricionariedade foi extinta de vez, restando o ato vinculado apenas a casos restritíssimos, em que o policial está autorizado a algemar o preso, desde que justifique, por escrito, as razões da tomada da medida extrema.
Entendo, porém, ao contrário, que — numa interpretação realística, que venha ao encontro das sentidas necessidades atuais de igualdade e de segurança da população — perante nossa Constituição Federal, a utilização da algema, quando da prisão em flagrante delito ou por ordem judicial, deve constituir a normalidade, figurando como exceção a sua não utilização. A meu ver, há valores maiores em jogo do que os suscitados pelo Supremo Tribunal Federal. O direito à vida e à segurança e proteção à integridade física do agente e de terceiro são garantidos pela Constituição Federal. O emprego da algema visa, fundamentalmente, preservar esses valores.
Mesmo no caso de comparecimento do preso a juízo — e todas as vezes que o detento estiver fora da cela, em ambiente público — também deve ser algemado. Durante a audiência, o magistrado, se achar conveniente, pode mandar liberá-lo, ouvindo-se, antes, o agente policial sobre a periculosidade do réu.
Acredito que o uso de algema no ato da prisão se impõe porque vivemos tempos modernos, de ostensiva violência pública, em que os marginais, isolados ou em quadrilhas organizadas, como regra, têm demonstrado pouco respeito pela vida alheia, não se podendo esperar deles que atendam, pacífica e mansamente, à voz de prisão e se disponham, sem reação, a ser conduzidos, ordeiramente, à delegacia de polícia. Mesmo os que acatam a ordem devem ser algemados para segurança e proteção sua, do agente e de terceiros.
Assim, o emprego da algema, no ato da prisão, data venia, se torna imprescindível por várias razões, evidentes por si, a saber: a) para proteção e segurança da integridade física do policial encarregado da diligência contra possíveis e inesperados atos de agressão do preso; b) para resguardar a incolumidade física de terceiros, ante atos de rebeldia do prisioneiro; c) para evitar a fuga do preso; d) para evitar a destruição de provas; e, finalmente, e) para proteção do próprio preso, que pode, inclusive, em desespero, atentar contra sua própria vida (suicídio).
Aliás, se o preso não for algemado e acontecer danos a terceiros, o policial responderá civil e criminalmente por negligência e o Estado por danos materiais.
Por isso mesmo, não se compreende porque, em se tratando a prisão de um ato tão perigoso, o uso de algema seja negativamente disciplinado, a priori, por quem não corre qualquer risco de vida ou de ferimento. Ocorre-me a figura do almirante que, em terra firme, quer dispor, por meio de regulamento, sobre a conveniência de o capitão de um navio — que se encontra em alto mar, em vias de naufragar, ao enfrentar uma violenta borrasca — atirar a carga ao mar ou arriar as velas.
Não se está dizendo que os eventuais excessos no uso da algema (por exemplo, a duração por tempo maior do que o necessário ou depois que o detido já estiver dentro da cela) não possam ser declarados inconstitucionais, mas isso numa análise do caso concreto, posteriormente à ocorrência do fato. Quanto à exposição do preso pela mídia, a televisão, a meu ver, pode mostrar o ato da prisão e a condução do preso algemado, desde que as tomadas sejam feitas na via pública, sendo proibidas dentro do distrito policial. Inconstitucional, também, se me afigura a permissão de entrevista do preso no recinto da delegacia, mormente sem a presença do advogado de defesa.
É obvio que o emprego da algema constitui uma intrusão menor na privacidade do indivíduo do que o próprio ato da prisão. Este, sim, atenta contra sua liberdade, sua dignidade, sua integridade moral e sua imagem pública. Decorre daí que, se o ato da prisão for legal, seja em flagrante delito ou por ordem judicial, o uso da algema é constitucionalmente permitido, eis que, além de se tratar do uso moderado de força contra o preso, autorizada por lei, visando proteger interesses maiores, como o direito à vida e à integridade física do agente policial e de terceiros, causa muitíssimo menos constrangimento do que a própria prisão.
O interesse do Estado — agindo publicae utilitatis causa — de evitar risco de vida, ou de danos pessoais, de seus agentes policiais ou de terceiros — que autoriza o uso de algema — sobrepuja, de muito, o individual (jus libertatis), e mais ainda relativamente à pretensa ofensa — pelo só fato do emprego da algema — à dignidade e imagem daquele que é preso.
Há de se reconhecer que, inerente ao ato da prisão, encontra-se a autorização legal do emprego de força coercitiva necessária à sua realização — quem pode refutar isso? — por parte do agente que o executa. Logo, o ato de algemar se insere, naturalmente, como meio moderado e imprescindível à implementação da medida, para que ela ocorra, eficazmente, sem risco de vida ou de ferimentos para o policial, para terceiros e para o próprio preso.
Evidentemente, o risco de vida que corre o policial que executa a diligência merece maior proteção constitucional do que uma pretensa agressão, reflexa e indireta, ao direito de privacidade (ou intimidade) do preso pelo uso da algema, quando, na realidade, o constrangimento que sofre decorre, precisamente, do ato ostensivo da prisão, em princípio legal e legítima. É o preço que o indivíduo paga para o resguardo, a proteção e o bem da sociedade. Como é a prisão que causa o constrangimento, se esta for, no futuro, tida como ilegal, o indivíduo tem direito a receber do Estado a indenização pelos danos morais que sofreu em decorrência dela. Mas não pelo fato, por si só, da utilização da algema. Todavia, se a prisão for legal, não haverá constrangimento pessoal juridicamente protegido, eis que ela decorrerá não da prisão, mas do delito praticado, do qual há fortes indícios de que o detido foi o seu autor.
Portanto, a meu ver, o uso da algemas (atividade meio), longe de ser uma agressão contra a dignidade do indivíduo, ou degradar a sua imagem — eis que ele vai legalmente, a final, ser aprisionado, isto é, ficar trancafiado atrás das grades (objeto-fim) — constitui um dever para o agente policial, que deve empregar, indistintamente, o instrumento de prevenção e de contenção em todas as pessoas, sempre que ocorrer a prisão, a fim de se dar cumprimento ao princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza conforme artigo 5º, caput, da Constituição Federal.
Paulo Fernando Silveira é juiz federal aposentado, jurista, escritor e membro da Academia de Letras do Triângulo Mineiro (ALTM).

PAULO RICARDO PAÚL
CORONEL DE POLÍCIA
CORONEL BARBONO

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